14 de mai. de 2010

AOS TRANCOS E BARRANCOS.

Vinham caminhando pela avenida, latas de tinta spray nas mãos. Hora? 2h. da madrugada de um domingo, por aí.... Caminhavam há uma hora mais ou menos, saíram de um salão de punks no bairro do Bom Retiro (O Templo do Rock’n’Roll) e já estavam na Avenida Celso Garcia, Tatuapé.
O baile acabou mais cedo, apareceram uns skin heads e deu uma briga feia: a vizinhança não gostou do barulho e chamou a polícia. Cassetetes aqui e ali, estiletes prá-cá e prá-lá e os dois policiais que apareceram, bateram em retirada, assim que perceberam que não eram páreo para mais de 350 punks e skins heads enfurecidos... A viatura foi incendiada e virada de rodas para cima... Deu no N.Y.T., mas não deu n’O.E.S.P. e nem no J.N. ...Coisas do Brasil.
Pararam em frente a uma lanchonete fechada àquela hora, e o papo foi esse:
-Como é que tá o seu spray?
-Dá duas anarquias bem pichadas.
- A parede parece boa, vamos lá...
Começaram pintar um imenso símbolo do anarquismo na parede nua. As roupas pretas os camuflava na penumbra da madrugada nublada. As pedras da calçada ainda úmidas da tempestade que desabou há pouco, eram as testemunhas do crime.
Saíram do Bom Retiro quando, após os guardas saírem de cena, foi anunciada, por uma gang de Carecas do Subúrbio, a presença inevitável da tropa de choque. Aí a briga equilibrava, e não estavam a fim de passar a madrugada no distrito, explicando para um delegado sonolento, o que significavam aqueles alfinetes nas orelhas e aqueles cabelos, cortados como o último grande guerreiro moicano... E ainda tinham que dar conta da viatura, que jazia com as entranhas pra o alto. Baratinhas decapotáveis, como diria Claudette Poodle.
-Merda de chuva!! A sola do meu coturno tá soltando...
-Foda-se seu coturno! Quem manda ficar comprando artigo de segunda do exército.
-Você tá hard-core hoje, hein Ted? O quê que foi??....
-A idiota da Sabrina, disse que não quer mias nada comigo, por causa da encrenca que a gente arrumou com o babaca do irmão dela!!!
-Ah!! Os punks também amam...
-Larga de ser cínico, porra! Você também arrasta um trem cheinho de merda por causa daquela metaleira babaca.
-Você nunca ouviu falar em intercâmbio cultural? E ela não é metaleira... É roqueira...
- Bela merda! São todos uns enferrujados...
-Tá, vamos acabar com essa anarquia e cair fora.
- Hum!!....
Continuaram andando e falando coisas a respeito das últimas encrencas, Ted balançava a bolinha da lata de spray, enquanto Noturno, olhava ressabiado para a bota alagada. Caminhavam com um vagar que só é possível aos Cristãos á noite, quando se refugiam do Império e da fúria de Nero...
- Meu spray secou – disse.
-É. Agora sem ônibus, só andando mesmo.
- Puta merda! Como você mora longe...
-É prá lá de São Miguel...
-Ah! A salvação...
-O quê?
-Lembrei, Noturno. Tem um resto de Martini aqui na minha mochila, que eu parei de beber quando começou a briga.
-Caraio, seu miolo-mole! Cumé que você deixa passar um detalhe importante desse?
-Tá aqui, Majestade. - e puxou uma garrafa de dentro da mochila velha. – Sirva-se.
-‘Brigado. –
Secaram o que restou dentro da garrafa em pouco tempo e caminhavam alegres madrugada adentro, falando de rock e de garotas, como há muito não falavam.
Amigos a pouco tempo, dois anos, Ted e Noturno se conheceram, prá variar, em uma briga que o primeiro arrumou com a turma do segundo.
Não deu mais encrenca, por que Noturno interveio em seu favor depois de saber, por intermédio do dono de um bar, que Ted era leucêmico e não podia ficar por aí brigando que nem cachorro-sem-dono...
A amizade seguiu seu curso normal, depois que Ted arrastou Noturno prá casa e lhe apresentou sua irmã: Lila. Que inclusive, Noturno já conhecia de outros bailes... Noturno e Lila, haviam namorado um tempo, tocaram em bandas de punk rock, shows em outras paragens... mas, haviam terminado e ficaram grandes amigos, os três, apesar da surpresa de Ted.
-E aí cara? Quando você e a Lila vão se acertar?
-Nunca. Eu e ela somos grandes amigos e só...
-Tava na torcida pra você ser meu cunhado, porra.
- Ah Ted? Cê sabe como ela é... A Lila não admite parceiro por muito tempo, ela é muito livre, e você já devia ter sacado isso: ela é sua irmã.
- Eu nunca parei prá pensar direito nela...
-Você não pensa nem em si mesmo, cara...
- E por falar em pensar, sabe no que eu tava pensando?
-O quê???? O Senhor Estava pensando? Cuidado vai feder! Merda queimada fede pacaraio.
-Vai-á-merda!
-Tá bom, Ted, tá bom: o quê você tava pensando?- Perguntou Noturno finalmente.
-Ali na frente é a Led Slay!
-É mesmo, cara! E tem um monte de metaleiros louquinhos prá pegar a gente...
A Led Slay é um desses salões que enchem de roqueiros e bichos-grilos de todas as espécies aos finais de semana, e àquela hora da madrugada era foco de encrencas para dois punks que não tinham mais nada a perder.
-Se você quiser Noturno, a gente pode dar a volta no quarteirão e não passar lá em frente...
-Não, não creio que um bando roqueiros bêbados possa ser perigo prá uma pulga.
-Então, Vamos lá!
Aproximaram-se da Led Slay, olharam o movimento de pessoas, que era pouco àquela hora da madrugada e seguiram, andando pela calçada do outro lado avenida. Havia vários roqueiros espalhados pelas calçadas em frente à Led, alguns caídos pelo efeito da marijuana queimada ou do álcool consumido... Ted levava na mão a garrafa vazia, como que agarrado á uma tábua no mar. O que não passou despercebido de Noturno.
-Você não está pensando em usar isso, né?
¬ -Não, mas na falta de um molotov, vai essa mesmo.
-Você tá louco.
De repente um dos roqueiros lá da frente da Led grita:
-Olha lá os punks!
Os roqueiros olharam e se certificaram de que eram mesmo dois punks e não miragem causada pela erva e começaram a gritar palavrões e caminhar na direção deles.
-Ih! Fudeu! Ó a merda feita...
-Deixa comigo Noturno.
-Você quer dizer: ‘deixa com a minha garrafa’?
-Isso mesmo.
-Corre Ted!
E correram, quando perceberam que os rockers faziam o mesmo na direção deles...
Ted pára de repente, grita dois dos melhores palavrões que tinha em seu estoque de obscenidades, com a mão direita fez um gesto peculiar com o dedo médio em riste e com a mão esquerda disparou o torpedo em forma de garrafa! A dita garrafa acertou em cheio a testa de um cabeludo e se espatifou na calçada junto com ele... Os amigos o socorreram e depois que se certificaram que era só um corte superficial, desembestaram a correr atrás do dois, gritando: Pega!!!
-Tá vendo? Seu idiota, a merda que você fez?
-Pára de falar e corre, senão não vai dar prá fazer merda nenhuma!!!
Continuaram correndo avenida abaixo em direção a ladeira da Penha e depois da ponte da CPTM entraram na Rua Guaiaúna em direção à Radial Leste, com pelo menos, 15 roqueiros nos calcanhares...
-Pega!!
-Mata!!
-Filho - disso!
-Filho - daquilo!!
-Corta o saco dele fora!!
Quando chegaram ao fim da rua, toparam com o muro da linha do trem, á esquerda a antiga estação da CPTM, Carlos de Campos e correram pra passarela sobre ela. Quando chegaram ao topo da passarela e passado primeiro susto, desandaram a rir feitos dois idiotas. Depois resolveram raciocinar:
-A gente precisa arrumar um lugar prá se esconder...
-Já sei! A gente se esconde na grade da passarela pelo lado de fora!
-Vamo nessa!
E pularam a grade da passarela, ficando pendurados do lado de fora...
Imagino a senhora, cara leitora, tranquilamente em casa, dormindo, seu filho de dezesseis anos, saiu dizendo que ia á casa de amigos que a senhora conhece bem, mas como a senhora não ligou prá lá prá se certificar de que ele se encontra lá... Seu queridíssimo e santo filho está, nesse exato momento, de costas para um abismo. Imaginou? Pois é. È assim que eles fazem e fazem muito bem...
O rumor dos roqueiros se aproximando foi logo percebido pelos dois, que se comprimiram atrás de um tapume de madeira para não serem vistos...
-Cadê aqueles filhos-da-puta?
-Acho que atravessaram pro outro lado!
-Vamos lá catar eles... – E foram...
Quando os roqueiros já desciam a passarela para o outro lado, Ted e Noturno saíram do esconderijo, pularam de novo a grade e desceram a passarela na direção contrária dos perseguidores.
-Caraio! Essa foi por pouco!
-Esses caras acham que é fácil pegar um punk com o cú-na-mão!
Mas a alegria dos meninos durou pouco: já na Radial, os roqueiros iniciavam a volta, desolados pela perda da presa, quando um deles gritou:
-Ó eles lá embaixo!!!
-Onde?
Lá, saindo da passarela!- E apontou a direção: a uns duzentos metros, Ted e Noturno se viravam em direção a Penha e pela gritaria causada pelos rockers, alguns guardas da policia ferroviária, se mobilizavam para ver o que estava acontecendo àquela hora em frente á estação.
Os dois pararam em frente á bilheteria e ficaram observando o movimento dos guardas e dos roqueiros, que já vinham descendo a passarela de volta.
A tática era simples:
-Seguinte Ted: A gente entra na estação, dribla a guarda e passa... Os roqueiros vão ser barrados... Quando os guardas sacarem a invasão!
-Suicídio cara! A gente tem que escapar dos guardas da PF...
-Tá fácil, são só dois... Elemento surpresa neles...
-Dois por enquanto, né!
Invadiram a estação com os roqueiros babando a trinta metros deles. Pularam as catracas, atropelaram os dois guardas, pularam trilhos, passaram cancelas, cem metros rasos com barreiras em menos de vinte segundos, ganharam a Radial Leste do outro lado da estação e sumiram na neblina da madrugada.
Sete metaleiros conseguiram escapar das garras federais, os outros foram seguros por guardas e agentes da estação. A perseguição continuou Radial a fora. Ted e Noturno seguiram em direção a Vila Matilde. Andaram um tanto e resolveram parar para respirar. Mas tiveram a impressão de ouvir vozes na avenida coberta pela serração paulista daqueles tempos. Mas não viam ninguém.
-Eles tão vindo aí, Noturno.
-Eu to com a impressão de que eles podem ver a gente, mas a gente não consegue ver eles...
- Estamos na parte mais alta da avenida, devem estar nos vendo mesmo, senão já teriam desistido....
-Quantos você acha que tá vindo aí, Ted?
-Só vi uns sete saindo da estação...
-Então vamo aí...
-Eu não agüento mais correr, eu vou encarar a pancadaria, Noturno.
-Cara, não dá prá tretar, vamos lá pra praça da Toco, sempre uns punks do Jardim Maringá, o pessoal da Babú, aí sim dá prá encarar esses metaleiros...
Sempre correndo passaram pela estação da Vila Matilde, entraram na Rua Dona Matilde e continuaram a correria até chegarem á praça da Toco. A Toco era outro salão de bailes que havia na região e nessa praça havia muitos bares das mais diversas tribos e estilos. Inclusive punks.
Depois de uns vinte minutos de corre-pára, chegaram, deram a volta na praça, mas não acharam nenhum conhecido:
-É. Parece que punks não freqüentam bailes idiotas como esse...
-Já sei! Noturno, vamos se esconder atrás das moitas do jardim. – E foram. Setaram-se na grama atrás de uma moita de hibiscos, toda florida e esperaram... A única coisa que conseguiam era respirar muito ofegantemente. Pois é, depois de quase uma hora correndo, não podiam fazer mais nada, alem de esperar os roqueiros aparecer. E apareceram. Quinze minutos depois.
-Ó eles lá, Ted! – Disse Noturno, olhando entre as folhagens do hibisco.
-Quando eles passarem por aqui, eu pego um e você outro... Pelo menos dois a gente esfola!
-Deixa disso cara! É só ficar quieto, você acha que eles vão procurar aqui? Tem umas quatro ruas que saem dessa praça, eles vão tomar um perdido, não vão nos achar.
-Assim espero... Mas se me acharem, pelo menos um eu garanto: vai pra UTI comigo...
-Então seremos quatro na UTI mais filha-da-puta da cidade...
Os roqueiros procuraram por mais de meia hora, rodaram a praça toda e como não encontraram ninguém, foram embora.
-Ufa! Pensei que eu não ia conseguir escapar desse cacete, cara!
-Eu também, mas vamos dar mais um tempo aqui, prá ver se eles não reaparecem e depois vamos embora.
-Você tá é doido! Eu não agüento dar mais um passo...
-Putz! É mesmo. A gente pode acabar a noite naquele buteco tomando umas? O quê que você acha?
-Uma grande idéia essa: Umas cadeiras, umas cocas geladas?
-Com cachaça e limão?
-Demorou!!!!
- Garotas?
-Só se for pra eu brochar!! E eu só tenho dezesseis...
-Hum!!! Ó o cheirinho do cheeseburger... do bacon fritando...
-Onde? Onde?
-Falou o consumista de plantão!
-Hahahaha! Deve ser no butiquim ali, ó!
- Vamo lá !!! Caraio!!!!
Alguns segundos depois, a lua cheia mostrava toda a sua magnitude e dois suburbanos entraram no bar da praça, cantarolando: “Garoto do subúrbio, você não pode desistir de viver...”, refrão de uma antiga canção punk rock...

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Noturno é artista plástico, trabalhou para diversas empresas e instituições, fez milhares de trabalhos artísticos convincentes e sagrou-se como uma lenda viva do graffiti brasileiro, tendo inclusive, seus trabalhos reconhecidos em diversos países. Casou-se com 36 anos e tem dois filhos pequenos, que já o acompanham em seus ataques estilísticos aos muros da cidade. E não é mais punk...nem atende pelo vulgo ‘Noturno’
Wallace ‘Ted’ La Penna, morreu em 1983, vítima de abusos gerais e se negar terminantemente a tratar sua leucemia. Suspeita-se que em uma transfusão de sangue feita em 82 sem seu consentimento, pegou o vírus HIV. Depois disso nunca mais seria o mesmo. Qualquer gripe o derrubava... Como naquela época sabia-se pouco a respeito da doença, foi dada como causa morte uma pneumonia.
Foi o guitarrista mais completo e perfeito que conheci, mas esta é outra lenda, outra história...

TÁ CEDO!!!