25 de mai. de 2009

DORALICE


Era um dia normal de aula, quero dizer, quase. As coisas importantes que nos acontecem, geralmente não acontecem em dias normais. Um dia normal é só mais um... Este não.
Na bagunça geral de uma sala de quinta série mais um elemento veio se somar: a professora de Ciências faltou. Tínhamos três aulas antes do recreio lá no Jocelyn e duas de Ciências, ou seja, mais de hora e meia de pura anarquia juvenil sem professora na sala.
É claro que de vez em quando passava a inspetora: Dona Maria, o terror da garotada, com ela não tinha refresco, era diretoria na certa e, dependendo da gravidade da situação, suspensão e se o capiau fosse levado da breca mesmo, expulsão. Foi o meu caso em 78.
Imagine só, hoje em dia as crianças não tem nenhum incentivo para estudar. Podem aprontar o que quiserem que não acontece nada, até passam de ano... Chegam até o ginásio sem saber nem ler. Não tem conseqüências, só passam de ano. Aprendam ou não, se comportem ou não.
Mas não era disso que eu ia falar, ia falar da Doralice. Ela era um pouco maior e acho que um ano mais velha. Andava junto com o Alfredo e a Rosângela, o Casal Vinte da sala. Namorados mesmo, de beijos na boca e amassos pelos cantos da escola e tudo mais que tinham direito. Isso tudo no meio de uma garotada de onze ou doze anos. A Doralice era a ‘vela’ particular deles. Era assim que o resto dos meninos e meninas a chamavam, com essa crueldade típica de púberes descobrindo-se e descobrindo o mundo.
A Doralice e a Rosângela eram amigas e depois que a segunda começou a namorar o Alfredo passaram a andar os três juntos. Naturalmente, mas a garotada não perdoava.
Eu tava nesse meio, não valia um centavo desde a quarta série, quando comecei me descobrir e achar que eu já era adulto o suficiente. Tinha sido aluno exemplar até então, era admirado por todos, meu boletim parecia o extrato bancário do Silvio Santos, mas... Eu descobri que tirava boas notas sem precisar ser CDF e eu desandei na baderna, nas garotas. Ah! As garotas.
Andar com esse trio me deixava admirado da suposta maturidade deles. A Doralice, apesar de não ter mais que treze, era toda mocinha. Loira, cabelos lisos compridos e se vestia sempre com um ‘quê’ de adulta: calças jeans, blusinhas decotadas e sendo alta e esguia, quando colocava o avental da escola, ficava elegantíssima. Pelo menos era mais alta que eu. Que achava ela linda, mas ela nunca me dava bola... Eu puxava papo, brincava, provocava, fazia desenhos românticos, mas ela, nem aí prá mim... Não que eu estivesse apaixonado ou coisa do tipo, já tinha um rolo com outra mas... nunca se sabe, né ?
Alguns dias antes eu tinha reclamado disso com o Alfredo, e ele me disse que eu tinha de ir prá cima dela, mas provavelmente ela não tava me percebendo, por que eu tava nesse rolo com a Isabel. Ficava com ela de papo, de namorico e as minas queriam exclusividade. O Alfredo era o único mais velho da sala, tinha já uns quinze anos e ficava arrumando para os mais novos.


-- Então, ela não vai te dar bola enquanto você ficar com a Isabel — Disse ele.
-- Mas eu não tô namorando a Isabel... – Respondí.
-- Não é o que parece...—Retrucou.
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Nesse dia de aula vaga, eu tava na minha carteira, tentando fazer mais um desenho, quando notei um burburinho e o Alfredo vindo pro meu lado. Eles estavam armando uma brincadeira muito maliciosa, daquelas: Beijo, abraço e aperto de mão. Mais beijo do que abraços ou aperto de mão...
--Aí pivete, chega aí que vou arrumar prá sua cabeça...— Disse ele.
--O quê você tá aprontando ? — Perguntei.
--Vou jogar a Doralice na sua mão... – Respondeu.
--Cê tá doido...
--Seguinte meu, vamo lá prá brincar com a gente... eu vou ficar tapando os olhos e perguntando quem você escolhe, aí quando chegar na Dora, dou um toque, vou apertar sua cara com a mão e você escolhe ela...
--Nada! Você vai me enganar, vai me por prá beijar marmanjo – Desconfiei né ?
--Seguinte, é sua chance, você já me viu sacanear alguém, pivete ? – Desafiou ele...
--Hoje, você quer saber?
--Cê tá me gozando né ? Só pode.—Ele parece que não gostou da piada...

Fui obrigado a reconhecer que ele não vivia mesmo sacaneando os outros, mas sabe moleque como é que é ? A gente tem confiar desconfiando, lá no meio da brincadeira, depois de escolhida a pessoa e o tipo de prêmio, você teria que cumprir. Imagina só se ele me põe prá beijar o Wilson? Aquele magrelo alto, dentuço e desengonçado... A pessoa fica com os olhos fechados pela mão de quem comanda a brincadeira, combinam trambiques desse tipo prá beijar na boca quem se quer e o cara te sacaneia, dá um toque no seu rosto que é a pessoa que você quer, e não é... É claro que você não é obrigado a beijar quem não quer, mas se não cumprir o combinado, vai ter que pagar mico prá turma toda e ficar desmoralizado na escola...
Fui! Quando juntei com o pessoal ele começou com um pulou prá outra, outro, outra, até que me escolheram. Essa, acho que ele fez de propósito também, era a Estela, menina tímida, muito recatada e linda também, se ela quisesse me beijar, eu até deixava as outras prá lá...
-- E aí mina ? Beijo, abraço ou aperto de mão? – Perguntou e todo mundo reparou que ele deu um ligeiro aperto no rosto dela..
-- Aí não vale! Disse o Roberto indignado, que além de vizinho da Estela era paga-pau dela. E muito meu amigo, e eu não queria sacaneá-lo. Ela não poderia escolher beijo em hipótese nenhuma.
-- Cê tá sacaneando Alfredo! – Disse outro que eu não me recordo quem era, mas a bagunça foi estabelecida na sala...
-- Aí ô! Silêncio! Silêncio! A Dona Maria aparece aí e brincadeira vai pro saco!
Estabelecida a ordem voltamos a brincadeira: Eu já tava com o coração na garganta, mas a Estela comedida como, era me salvou a pele...
-- Abraço!—Disse ela depois de alguns segundos de agonia e a meninada gritando feito besta.
-- Uhu! – Gritou o Alfredo. Tudo isso sem tirar a mão do rosto dela...
Quando ela virou prá me abraçar, percebi uma certa expressão de alívio no rosto dela... O que será que isso queria dizer ? Sei lá. E expressão igual no meu com certeza! Mas a minha agonia ainda não havia acabado: ainda tinha que encarar o combinado com o Alfredo e quando encostei, ele disse bem baixinho no meu ouvido:
-- É agora mano!—Eu travei. A minha espinha virou um trem só.
Ele pôs a mão no meu rosto e começou a perguntar: é essa ? Não. É essa ? Não. Putz! Que enrascada. E eu virando um iceberg. E apertou levemente o meu rosto -- É essa ?—Foi a pergunta que ficou ecoando na minha cabeça por décadas... ‘É essa ?’.
-- É! – Respondí, tentando bancar o homenzinho da situação... E a pergunta fatídica:
-- Beijo, abraço ou aperto de mão ? –
Fudeu! Aí ele apertou com mais veemência a minha cara, mas sem dar na vista, prá não virar baderna de novo, pois haviam outros pretendentes na fila...
-- Beijo!
-- Frio, quente ou fervendo ?
E eu na dúvida se ele iria cumprir o combinado, com o coração na boca...!!!
-- Fervendo! – Prá acabar de lascar tudo mesmo.
-- Corre pro abraço mano! E me empurrou na direção dela. Ufa!
Era ela! Era ela mesmo!

Ele fez seu papel e me ensinou, na prática, o valor da palavra do homem, não interessa a idade dele.
Bom, a Doralice veio, sorridente, linda e de braços abertos. Uma dama. Eu sumi nela, foi algo jamais experimentado. Indescritível, inexplicável. Não sei quanto tempo ficamos ali, sob a zoeira generalizada, torcida gritando, lábios, línguas e tudo mais... Me pareceu uma eternidade. A eternidade deve ser ótima. Entendi também, por que precisamos dela. Nos lábios de outra criança...
Não sei se foi o dela e nem faz diferença, mas foi meu primeiro beijo...
O Alfredo não sei que fim levou, mudou de escola... Mas valeu, Mano!
A Eternidade lhes sirvam de prêmio... Deus sabe disso, é profissão dele.

TÁ CEDO!!!